terça-feira, 8 de setembro de 2020

Anfiteatro - Cohamó 2020 #2

Após escalarmos no vale do Trinidad, veja relato no último post, descemos pro camping La Junta onde recarregamos as mochilas com comida para mais alguns dias e ajustamos os equipamentos, dormimos uma noite e no dia seguinte subimos para o Anfiteatro, foram cerca de 3h de caminhada até esse setor impressionante com paredes por todos os lados! Os bivaques estavam cheios e nossa primeira noite foi no relento, felizmente não choveu e foi bem agradável!

Parte do Anfiteatro

Tínhamos uma lista grande de possibilidades para tentar e fomos elegendo as que mais se encaixavam nas nossas condições. Começamos pelo Filo de la Aleta de Tiburón (5.10+/600m), uma via que não estava na lista inicialmente, mas que quando descobrimos nos pareceu uma boa opção de aclimatação para as escaladas do Anfiteatro. A maioria das pessoas fazem até a P6 e descem, pois realmente é a parte mais interessante da via, mas resolvemos que seria um bom treino fazê-la inteira, o problema é que o rapel tem que ser por outra via. Acordamos no dia 23/01 às 6h da manhã e caminhamos sem pressa por 1h até a base da via, Otto guiou as duas primeiras, por um slab com chapas e uma ou outra proteção móvel. Guiei a terceira e a linda quarta enfiada, a aresta mista que rende umas fotos bem legais! Otto pegou o final da aresta e eu a sexta enfiada, por um diedrinho fácil mas bem bonito. Depois da P6 a via perde inclinação, e intercala alguns trechos de escalaminhada com outros de escalada, inclusive uma chaminé que termina em um lance de 5.10+ bem delicado. Depois da P10 seguimos por uma crista fina praticamente em travessia até o grande colo entre a Pared del Atardecer e Pared del Tiempo, dalí é preciso decidir para qual cume seguir, optamos pela esquerda e subimos mais uns 200 m de escalaminhada, ainda encordados e escalando em simultâneo até onde pudemos nos desencordar e finalmente caminhar pro cume. Foi uma escalada bem divertida, sem pressa, clima agradável, graduação mais amigável, desfrute total! Chegamos ao cume às 12h30 e procuramos o final da via Al Centro y Adentro, por onde rapelamos visualizando a nossa próxima empreitada. Às 15h chegamos no chão, com tempo para descansar e mudar nosso bivaque no relento para o quarto 5 estrelas, embaixo de um boulder e ao lado do rio!

Aleta






Após rapelarmos pela Al Centro y Adentro (5.11b/450m), inclusive tendo visto uma cordada subindo no mesmo dia nos deu a certeza que este seria o principal objetivo ali no Anfiteatro! A motivação era grande e usamos a logística a nosso favor, deixando uma garrafa d'água no platô da P6 e o material todo na base. Descansamos o dia seguinte inteiro e dia 25/01 fomos com todo o gás pra via!

Bivaque

Acordamos 4h30, tomamos café e às 6h40 estávamos começando a escalar, leves, com apenas uma mochila e pouca água! Otto tocou as três primeiras enfiadas: fendas largas, uma fendinha de dedos em diagonal e o clássico offwidth que sempre aparece nas fotos. Uma mais linda que a outra! Só fiquei devendo o lance da entrada pro offwidth da terceira. Guiei o bloco das 4 enfiadas seguintes, começando em um diedrinho perfeito seguido por um lance de placa até P4. A quinta enfiada começa em um diedro liso e aos poucos as agarras vão aparecendo, algumas chapas e micro-friends protegem lances técnicos muito divertidos! Uma garoa fina às vezes umedecia a pedra e nos deixava com a pulga atrás da orelha, mas logo tudo secava e seguíamos novamente. A sexta enfiada é fácil, resgatamos a água e segui pra sétima, também técnica mesclando lances com proteção fixa e móvel, e um crux no final que me tirou a cadena.

Terceira Enfiada

QUarta enfiada?

Final do primeiro tramo

Otto guiou o diedro perfeito da oitava enfiada, começa com peças grandes e vai diminuindo até onde entram apenas micro nuts "meia boca", depois volta a alargar pra #.5, enfiada longa  e muito bonita! Depois a enfiada do "Bico de Pato", começa em chapas bem delicada, passa por baixo da fina laca e termina em chaminé, uma das mais exóticas. O frio estava rachando nessas últimas enfiadas e a chuva nos alcançou de verdade na P9, Otto escalou a décima enfiada molhada, e eu fiquei com a 11ª, nas mesmas condições. Felizmente uma era mais fácil e a outra tinha fendas contínuas, que facilitou concluirmos aos trancos e barrancos. Pra nossa surpresa a última enfiada estava seca! E pre fechar com chave de ouro consegui fazer sem quedas os lances melindrosos que nos levaram ao cume novamente!

Duck Beack

Foram pouco mais de 8h de escalada e menos de 2h de rapel, muuuito frio e muita diversão! Essa foi sem dúvida uma das melhores vias que escalamos por lá. As enfiadas são todas interessantes, exigentes, mas com boa proteção, os crux são relativamente concentrados e podem ser feitos em artificial, mesmo ficando devendo alguns, ficamos muito felizes com nossa escalada! Nada como guiar sem mochila! Recomendo!


No dia seguinte, nosso quarto e último dia no Anfiteatro, ainda cansados da Al Centro y Adentro, decidimos escalar a Omnomatopeya (5.10 / 150m), quatro enfiadas que misturam diedros e lances de placa, guiei as duas últimas e essa também pudemos colocar toda na cadena. Um dia tranquilo para um "descanso ativo" com escalada curta + caminhada de volta pro camping.

Omnomatopeya

Voltamos ao camping e ainda tínhamos 3 dias livres, mas a previsão era de começar a chover já no primeiro dia à noite, e tempo bom novamente só no terceiro dia. No terceiro e último post eu conto o que conseguimos fazer nesse final de trip!

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Bienvenidos a mi Insomnio - Cochamó 2020 #1

Pra quem gosta de grandes paredes, um dos destinos mais óbvios da américa do sul é o vale de Cochamó, no Chile. Famoso por suas paredes de granito que chegam a mais de 1000m de extensão cheias de fendas! Otto e eu programamos uma trip de 15 dias pra esse paraíso da escalada, onde ficamos na segunda metade de janeiro deste ano 2020.

Cerro Trinidad visto do camping

Reservamos antecipadamente as vagas no camping La Junta, pois seriam solicitadas as reservas na guarita que tem na entrada da trilha, se não tiver reserva as vagas podem estar esgotadas e você não conseguir subir.

Começamos a peregrinação saindo de Salvador (eu) e Curitiba (Otto), levamos um dia de voos e escalas até chegar na cidade chilena de Puerto Montt, onde dormimos no Hostel FX (25 mil Pesos) após pegar uma van do aeroporto pra cidade (8mil p/ 2). Nossa escala em Santiago foi muito rápida, não deu pra trocar $$, e no aeroporto de Puerto Montt não tem casa de câmbio, como chegamos desprevenidos tivemos que gastar o cartão de crédito nesse primeiro momento. No dia seguinte trocamos o dinheiro no centro, fizemos compras para 15 dias e pegamos um ônibus da Transhar (5 mil) na rodoviária, que após 3h de pinga-pinga nos deixou na entrada da trilha, que fica 11km depois da cidadezinha de Cochamó.

Reservamos antecipadamente as vagas no camping La Junta, pois seriam solicitadas as reservas na guarita que tem na entrada da trilha, se não tiver reserva, as vagas podem estar esgotadas e você não consegue subir. Porém às 15h30 a entrada da trilha é fechada, como chegamos após esse horário, dormimos em um camping exatamente onde o ônibus parou.

Da entrada da trilha até o camping La Junta (e outros 3 ou 4 campings próximos), que fica no vale, são cerca de 11km por uma trilha na floresta. Agendamos para 9h da manhã um cavalo, que sobre com até 60Kg, pelo preço de 35.000 pesos. Tínhamos quase 80kg dentre equipamento de escalada, camping e comida, o que ainda nos garantiu uma mochila de quase 10kg nas costas. Porém nosso arrieiro só subiu às 13h, levamos pouco mais de 3h pra finalmente chegar ao camping La Junta.

Trilha

Cochamó tem um clima mais ameno falando de Patagônia, mas o grande "problema" dos escaladores por lá são as chuvas, por vezes incessantes durante dias e mais dias. Pra nossa sorte, chegamos após três dias de sol, pegamos as trilhas relativamente secas (não quero nem imaginar elas molhadas) e o clima bom durou praticamente toda nossa estadia!!

O camping nos surpreendeu pela organização, mesmo sendo tão remoto, abastecido apenas pelo sistema de cavalos é muito bem cuidado, possui comedores (barracões com mesas e pia pra cozinhar), muito espaço para barracas, mesas, banheiros secos com vista pras montanhas e chuveiro com aquecimento solar (mas não tenha muita esperança quanto à isso). no site cochamo.com você pode reservar por 8 dólares/noite.

Montamos as barracas, separamos comida pra 4 dias, equipamento e kit bivaque (isolante, saco de dormir, saco de bivak e um toldo) e dormimos pra no dia seguinte começar cedo a subida pro vale do Trinidad, o primeiro "setor" que iríamos conhecer.

Três horas subindo pela trilha com a cargueira nas costas nos levaram do camping até a base do Cerro Trinidad. Assim que a trilha encosta na parede, alguns metros à esquerda tem uma área plana e aberta com várias vagas para bivaque, ótimo se o tempo estiver bom. Deixamos o material de dormir e o rango lá, e seguimos por mais 2h vale adentro, passando pelo acampamento do Chiquinho (um grande bloco abrigado da chuva) e subindo uma piramba até a base da via No Hay Hoyes, no Gorila. Graduada em 5.11a com 6 enfiadas e 250m de extensão foi uma boa pedida para sentirmos a escalada no local sem o comprometimento de uma via muito longa. 


Começamos a escalar já bem tarde, quase às 13h, após 5h de caminhada. Otto começou pela bonita primeira enfiada, depois eu peguei um diedro com início em offwidth que me fez sofrer, Otto guiou a 3ª passando um lance duro por uma laca e chegamos ao platô que divide a via ao meio. Otto tocou a 4ª passando por uma sequência diedro/aresta/laca/diedro bem bonita e sobraram as duas últimas de presente pra mim, fendas frontais de mãos, lance vertical passando por umas lacas duvidosas e o grand finale, uma fendinha protegida por micro friends com um lance de equilíbrio nos últimos 5m da via! Demorei mas saiu! 

Segunda Enfiada
Últimas Enfiadas


Penúltima enfiada?

Chegamos ao cume pouco antes das 18h, passamos alguns minutos curtindo o visual e logo começamos a descida, às 20h30 estávamos de volta ao bivaque na base do Trinidad. 

Cume!

Tiramos um dia de descanso e aproveitamos pra estudar nosso próximo objetivo, a via Bienvenidos a Mi Insomnio, 5.10d, 920m divididos em 20 enfiadas mais alguns metros de escalaminhada no início. Subimos essa parte inicial, localizamos a primeira enfiada e deixamos nosso equipamento lá em cima, tudo pra agilizar o acesso no dia seguinte, que faríamos ainda à luz das headlamps. Separamos 3 litros de água por pessoa, visto que o céu estava azul e a temperatura ultrapassava os 30ºC de dia, com vento zero. Dormimos ao relento, olhando pra via que nos esperava no dia seguinte.

Dormindo, tentando

Acordamos, tomamos café e às 4h40 estávamos começando a escalar.Comecei guiando as três primeiras (guiamos em blocos, para otimizar o tempo evitando perder tempo na troca de equipamentos), na terceira enfiada, ainda de noite, já senti que a mochila iria me encher o saco, mas lá fomo nós...Otto guiou a longa quarta enfiada, um diedro extenuante com fenda de borda arredondada, como ele chegou quase sem peças na parada, eu segui na frente pela quinta e sexta enfiada, essa também um diedro com fenda offset, mas que terminava com chapa em lances de placa lisa. Uma enfiada fácil e chegamos no início da travessia, fui de participante e consegui escalar bem até perto do final, depois foi no furto mesmo. A nona enfiada é mais uma sequência de placa lisa, guiei ela e a décima, um grande diedro que me custou mais de 1h e praticamente meus 2 jogos de camalots completos! Otto pegou a próxima enfiada, continuação do mesmo diedro, mas com lances de diedro com fenda larga, pés chapados no liso, difícil de enxergar a proteção que se está colocando. Sentimos falta de mais peças largas pra esse lance, mesmo tendo levado 2x #3 e 1 #4. Paramos na parada dupla no meio dessa enfiada, e depois juntamos o final dela com a próxima enfiada fácil, o que foi uma boa opção.

Nas enfiadas de borda arredondada

Pouco antes da travessia

Travessia


Chegamos ao platô da P13, até lá escalamos na sombra, pois começamos de noite e quando o sol virou, já estávamos protegidos dentro do diedro por onde passam as enfiadas 10 à 12. Ter feito essa primeira metade da via na sombra foi essencial pro sucesso, pois escalar as próximas 4 enfiadas no sol e com zero vento foi bem punk! Toquei até a P15 e Otto chegou na P16.

Trecho fácil e quente

A décima sétima enfiada é um of width que demos graças por escalar na sombra dentro dele, Otto tocou a 18 e a dura e técnica 19ª enfiada, uma fenda fina e contínua de 50m, onde vão todas as peças micro que vc tiver no rac. Felizmente apesar do sol, já tinha um pouco de vento, então a escalada se tornou mais agradável. Fiquei com o presente da última enfiada, começando em uma fenda frontal de mão fina, terminando por um diedro, acessando o platô onde a parede perde a inclinação.

Último crux

Foi uma sensação de alívio gigante trocar a moccasym pelo 5.10 guide e caminhar mais alguns minutos pro cume, onde chegamos às 18h40. Ficamos ali alguns minutos curtindo o visual. Dava pra ver o Cerro tronador e as agulhas do Frey, já depois da fronteira. Pouco abaixo do cume já tem alguns tótens que indicam o caminho para os 2 ou 3 rapéis que desembocam na canaleta de pedras soltas por onde desce de volta pra base. Pra nossa alegria tinha uma água escorrendo pouco abaixo do cume, no caminho pro rapel, matamos a sede e seguimos o caminho de volta pra base.

Retrato de cume

Chegamos juntos com a última luz do dia no nosso acampamento, jantamos e dormimos até o outro dia quando o sol bateu na nossa cara, quase 11h da manhã.

A Bienvenidos foi uma via bem marcante, sentimos dificuldade no grau, especialmente nos lances de placa, por mais paradoxal que pareça. Escalamos com material para um dia, mas mesmo assim nos sentimos pesados, muita água (não sobrou) e muitas peças no rac (também usamos tudo) tornaram a escalada meio sofrida. Mas quem quer entrar em uma via de 920m sem sofrer que fique em casa né! kkkkk

Assim terminou nossa primeira investida em Cochamó, descemos pro camping, onde refizemos as mochilas, pegamos mais comida, dormimos e planejamos a próxima investida, dessa vez no vale conhecido como Anfiteatro. Mas essa eu conto no próximo post!

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